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26 de Abril de 2024
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    Nada a comemorar: audiência pública sobre a ditadura militar reúne instituições em defesa da democracia

    Representantes da UFPA, MPF, DPU, DPE, CPT, OAB, Câmara de Vereadores de Belém e Fórum Estadual de Direitos Humanos fizeram discursos contra as comemorações ao golpe de 1964, diante de um auditório lotado

    há 5 anos

    Em audiência pública promovida por várias entidades em Belém, o foco dos discursos foi sobre as violações de direitos humanos e a necessidade de justiça para as vítimas da ditadura militar que foi iniciada no Brasil 55 anos atrás, em 1 de abril de 1964. O evento foi uma resposta contra as comemorações promovidas pelo governo brasileiro para o golpe, com a união da sociedade civil e de instituições que atuam em defesa das garantias do estado democrático de direito e da Constituição de 1988. O auditório com capacidade para 100 pessoas no Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará (UFPA) ficou pequeno para o público, formado por muitos estudantes e por lideranças políticas que viveram o período de exceção.

    Convocada pelo Ministério Público Federal (MPF), a audiência teve a presença de representantes da Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Estado do Pará, Comissão Pastoral da Terra, Câmara de Vereadores de Belém, Ordem dos Advogados do Brasil e Fórum Estadual de Direitos Humanos. O Procurador Regional dos Direitos do Cidadão, Paulo Santiago, deu início ao evento resumindo as recomendações enviadas em todo o país pelo MPF para que os comandantes militares não promovessem comemorações da ditadura. “É incompatível com a Constituição Federal comemorar a data que inaugurou um período de violações sistemáticas de direitos humanos, com suspensão da democracia e das liberdades públicas, prisões sem o devido processo legal”, disse. A recomendação foi enviada em 19 estados e no Distrito Federal. No Pará, o Exército manteve a comemoração, mas ela foi restrita ao ambiente militar. Para o procurador, houve claro recuo na intenção de fazer cerimônias públicas. “No fim das contas, isso provocou um despertar da sociedade para a necessidade de nos mantermos vigilantes, porque existem focos de ameaça para a democracia e intenções claras de revisionismo dos fatos históricos e até de retorno a um regime semelhante ao que foi iniciado em 1964”, disse.

    O representante da DPU, Raphael Santoro Soares, tratou sobre a ação civil pública ajuizada pelo órgão em Brasília, pedindo a proibição de comemorações para a ditadura militar. A ação conseguiu uma liminar favorável da Justiça Federal, proibindo os eventos, que foi logo depois cassada a pedido do governo, pelo Tribunal Regional Federal da 1a Região. “A DPU questiona sobretudo o gasto de recursos públicos. O estado democrático de direito não pode financiar comemorações ao fim da democracia”, disse. “Mães até hoje não sabem o que aconteceu com seus filhos, não puderam enterrar seus corpos. Ao comemorar essa data, o país está rindo da dor dessas pessoas, violando a dignidade humana básica de cidadãos brasileiros. Como agente público, me sinto na obrigação de pedir perdão às vítimas e aos seus familiares pelos eventos dos últimos dias”, disse.

    O representante da DPE, Francisco Fernandes Neto lembrou a importância da UFPA estar sediando o evento, como casa do conhecimento e último refúgio do apego aos fatos históricos, com papel fundamental em refutar os revisionismos e negacionismos da história do país. “Estamos hoje temendo novamente um golpe militar. E precisamos temer, porque o golpismo voltou a ser discurso oficial no Brasil”, disse. O defensor público lembrou em sua fala da importância, para os grupos conservadores brasileiros atuais, das questões de gênero e de costumes. Recentemente, o presidente da República fez elogios públicos à Alfredo Stroessner, ditador do Paraguai que foi também um pedófilo, acusado pela violação de mais de mil meninas adolescentes. “Outro fator importante para a ascenção recente do conservadorismo em nosso país é um anti-intelectualismo que multiplica teses conspiracionistas e revisionistas para um público que passou a consumir informação preferencialmente no you tube. Nesse contexto, o papel do direito e dos juristas é de resistência e de luta pela manutenção dos direitos e garantias da Constituição de 1988”, afirmou.

    A presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/PA, Juliana Fontelles, assinalou a importância da união das instituições nesse momento histórico e falou do seu orgulho de integrar a entidade representativa dos advogados brasileiros, que vem se posicionando com firmeza contra os revisionismos do período ditatorial. Filha e irmã de vítimas da ditadura, Juliana emocionou os presentes ao relatar a prisão de seu pai, o advogado Paulo Fontelles, junto com a esposa dele na época da ditadura, Hecilda Veiga, que estava grávida de seu irmão mais velho, Paulo Fontelles Filho. Ambos sofreram torturas nas mãos de agentes do regime e Hecilda teve o filho nos porões da ditadura. “Minha avó foi buscar o neto na cadeia e a ditadura demorou a autorizar a transferência dele porque estavam procurando um par de algemas que servisse em um recém-nascido”, contou.

    A anistiada Eneida Guimarães, uma das idealizadoras da audiência pública, ela mesmo também presa pela ditadura por sua atividade política na época, lembrou dos muitos cidadãos brasileiros que foram obrigados a viver na clandestinidade para não terem que fugir do país e para continuarem atuando politicamente. “Para começar, queria dizer desde já: eu sou comunista. E a atitude do presidente não é surpreendente, era anunciado. Quando candidato, prometeu fuzilar a petralhada e acabar com os vermelhos. Nada aconteceu quando ele fez essas declarações. O elogio ao golpe militar era uma questão de tempo”, disse. Mesmo depois de tudo que passou nos anos de chumbo, ainda perguntou à plateia que escutava atenta: “esse é um país rico, de muita riqueza, o que falta para distribuirmos essa riqueza na conta justa?” Eneida também lembrou das mulheres presas, torturadas e assassinadas, mencionando Dinalva Teixeira, capturada e morta na repressão à guerrilha do Araguaia. Quando os governos militares ficaram insustentáveis pela repressão e brutalidade e movimentos pela democracia se tornaram mais fortes, os corpos dos guerrilheiros assassinados, lembrou, foram desenterrados e provavelmente incinerados pelos próprios assassinos.

    O Padre Paulino Joanil da Silva, da Comissão Pastoral da Terra, lembrou dos muitos camponeses que foram vítimas da ditadura, torturados, mortos e desaparecidos durante os anos de repressão e supressão de direitos. “Nunca podemos permitir a celebração de um golpe que não golpeou só as vítimas, mas o próprio direito dos cidadãos brasileiros de manterem a cabeça erguida”, disse. Como representante do Fórum Estadual de Direitos Humanos, o padre propôs às instituições presentes que a Casa das 11 Janelas, prédio que foi local de prisão e torturas em Belém, seja transformado no Memorial Paraense da Verdade. Ele também sugeriu que sejam criadas comissões da verdade estaduais para apurar os crimes da ditadura contra camponeses e indígenas em território paraense.

    A pesquisadora Helena Palmquist, também assessora do MPF, apresentou os dados da Comissão Nacional da Verdade (CNV) sobre os ataques das forças militares brasileiras contra povos indígenas, enumerando casos como o do povo Waimiri-Atroari, do Amazonas, que sofreu inúmeros massacres para a abertura da BR-174, cortando seu território tradicional. Posteriormente, o mesmo povo foi vítima da usina hidrelétrica de Balbina, da abertura de suas terras para a mineração e, mesmo em período formalmente democrático, vem sendo fortemente pressionado, desde o governo Temer, para permitir a construção de um linhão cortando novamente a terra indígena. Quando a primeira obra da ditadura começou, os waimiri-atroari eram mais de 3 mil pessoas; no fim do regime, eram pouco mais de 300. A pesquisadora lembrou que as políticas da ditadura que levaram ao extermínio estimado de mais de 8 mil indígenas estão sendo revisitadas pelo governo brasileiro, que editou a uma medida provisória, a MP 870, que viola os artigos constitucionais garantidores dos direitos indígenas.

    O professor Girolamo Treccani, da UFPA e membro da Comissão Camponesa da Verdade, fez um discurso recuperando as reais origens do golpe militar de 1964. “A ditadura foi uma resposta às modificações que o governo Goulart estava promovendo na estrutura agrária nacional. Poucas semanas antes do golpe, alguns decretos iriam permitir o acesso a faixas de terra valorizadas mas pouco ou não utilizadas, descumprindo o que o Estatuto da Terra dizia. Por isso eu queria lembrar aqui das consequências do golpe, do pós-golpe”, disse. Ele enumerou como consequências diretas do golpe: a concentração da propriedade e a expansão da fronteira, que tornou a Amazônia uma área central para exploração e ocupação, ignorando a existência dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores que existiam na região. A ditadura é, portanto, origem e explicação para a permanência dos graves conflitos agrários no Brasil. “O caos que temos hoje tem explicação e tem autores. A responsabilidade é dos governos militares”, disse Treccani.

    O professor Antônio Maués, da UFPA, parabenizou a plateia cheia de jovens e assinalou a importância de encarar a história como um olhar para o passado que permite compreender o presente e pensar o futuro. Ele fez uma leitura das primeiras frases da Ordem do Dia emitida pelo Ministério da Defesa para leitura nas comemorações ao golpe militar em 31 de março de 2019. Logo no início do documento, as forças armadas são elogiadas como “alinhadas” com as “legítimas aspirações” do povo brasileiro, para em seguida afirmar: “O 31 de Março de 1964 foi um episódio simbólico dessa identifcação, dando ensejo ao cumprimento da Constituição Federal de 1946”.

    Para o professor, o documento começa com uma falsidade. “Isto aqui é falso, é mentira, não corresponde ao que de fato aconteceu”, afirmou. E passou a citar o Ato Institucional nº 1, o primeiro documento emitido pela ditadura, logo após o golpe militar, em 9 de abril de 1064: “a revolução vitoriosa se investe no exercício do poder constituinte; ela edita normas jurídicas sem que esteja limitada pela normatividade anterior à sua vitória; para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la na parte relativa aos poderes do presidente da República”. O mesmo ato, apesar de dizer que não haveriam outras modificações na constituição, também suspendeu as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e estabilidade por seis meses e deu poderes aos comandantes militares para cassar os direitos políticos de centenas de cidadãos. “E isso foi apenas o primeiro ato. Depois veio o AI-2, que suspendeu as eleições de 1965 e proibiu os partidos políticos”, lembrou.

    “O que está na base de tudo isso? Qual é o conflito que nós achávamos que a Constituição de 1988 tinha conseguido encaminhar e que na verdade não conseguimos? É o conflito da desigualdade. Só há um regime democrático estável, consolidado, só há uma sociedade que vive plenamente seus direitos fundamentais em uma democracia, quando essa sociedade é mais igualitária. Sociedades extremamente desiguais como continua sendo a nossa, têm muita dificuldade para manter a sua democracia, porque as classes dominantes, as elites, instituições do próprio estado como as Forças Armadas, vão, lamentavelmente, agir contra políticas de diminuição da desigualdade, vão agir contra políticas de distribuição de renda e de propriedade”, disse Antônio Maués ao analisar as razões para a instabilidade da democracia brasileira.

    O vereador Fernando Carneiro, da Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Vereadores, detalhou em sua fala a necessidade de um processo de transição para que a sociedade brasileira possa em definitivo deixar para trás as ameaças à democracia. “Transição significa levar a julgamento e responsabilizar os facínoras que mataram e torturaram durante a ditadura militar. Nós somos o único país da América Latina que não prendeu esses criminosos”, afirmou, lembrando ainda do papel dos Estados Unidos no golpe militar de 1964. “Esquecer é perigoso. O risco não está só no executivo, mas em outras autoridades que vêm a público para relativizar o golpe e a ditadura militar que se seguiu. Lembro a frase de Martin Luther King, o que preocupa é o silêncio dos bons. O que eles querem é nos silenciar e por isso, esse não é um tempo para o silêncio”.

    A audiência foi encerrada pelo procurador da República Felipe Moura Palha, que enfatizou a permanência das práticas autoritárias no trato das instituições estatais do Brasil com o povo brasileiro, também como herança nunca resolvida da ditadura instalada em 1964. “A democracia não pode ser formal. Enquanto convivermos com a desigualdade, com a criminalização da pobreza, com o racismo institucionalizado, com a falta de participação social nas decisões governamentais, enquanto tudo isso for tolerado, a democracia brasileira continuará sendo meramente formal e, portanto, sempre poderá ser ameaçada”, concluiu.

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